sexta-feira, junho 13, 2008

Séries 26

- Bom dia! Desculpe eu ando à procura do caminho do futuro…
- Ah, não tem nada que enganar, vá sempre em frente e depois vire à direita!
- Muitíssimo obrigado!



- Bom dia! Desculpe, eu ando à procura do caminho do futuro… disseram-me para ir sempre em frente e virar depois à direita, mas fui parar a um caminho que desabou e… não tem alternativas…
- Ah claro! esse caminho pela direita só podia dar mesmo num beco sem saída! É pela esquerda o caminho! mas antes do cruzamento onde virou à direita!
- Muitíssimo obrigado!



- Bom dia… olhe já estou cansado de procurar o caminho para o futuro… primeiro disseram-me para virar à direita e fui dar a um beco sem saída, a estrada tinha desabado… percebe?... depois disseram-me que era para virar à esquerda antes de ter virado à direita, mas fui dar a uma estrada cheia de rotundas, fartei-me de andar às voltas, às voltas e no fim, nem sei como, fui parar ao mesmo sítio onde a estrada tinha desabado…
- O quê? Você está a gozar comigo?
- Como assim, eu procuro o caminho do futuro…?
- O caminho do futuro? Mas que raio de porra é essa? Você é maluco ó quê?
- Não senhor, eu procuro o caminho do futuro, do futuro sustentado e sustentável…
- O caminho do futuro? Você é mesmo maluco!... e ainda por cima o caminho do futuro sustentável?? Para além de maluco é imbecil e está a gozar comigo!
- Mas não, veja bem, quero saber o caminho para um futuro onde a conservação seja um conceito a vigorar em pleno, onde o aumento demográfico seja travado drasticamente, onde a desertificação dos campos agrícolas pare e o aumento da produção de alimentos seja real, onde pare a especulação bolsista e as fusões em larga escala, onde se respeitem os direitos humanos e a justiça social, em que acabe a divisão do mundo em vários mundos, onde se consiga travar o aquecimento global e se desenvolvam formas de energia credíveis e limpas, onde a água seja um bem acessível para todos...
- Oh homem, não seja parvo!

quinta-feira, junho 12, 2008

Séries 25



O dia corria igual a tantos outros, não fora a presença daquela ainda estranha companheira de casa. Ele estava habituado a um quotidiano sem regras em que a rotina era a sua própria inexistência e, para dizer a verdade, pouco parava em casa, preferia umas cervejas na companhia de quem calhasse até que o cansaço o vencesse e o levasse para a cama, muitas vezes fora de horas, muitas vezes só, outras vezes acompanhado por alguém que lhe servia os propósitos da carne. Nesse capítulo da sua vida, era egoísta, usava nos seus próprios termos e no seu belo prazer e descartava, como quem usa uma pastilha elástica esperando que ela liberte todo o seu suco sem ter que dar uma única mastigadela.

Os primeiros raios de luz que o faziam despertar eram muitas vezes penosos e agressivos. O corpo fazia-o lembrar com dor dos excessos que cometia e da falta de comida que se esquecia de ingerir. É, insistia em enganar o corpo com álcool e com álcool combatia a ressaca.

Agora, porém, a presença daquela alma que subitamente lhe apareceu em casa numa dessas noites perdidas no tempo e que, sabe-se lá porquê, foi ficando noite após noite e dia após dia, estava-lhe a provocar mudanças no seu quotidiano.

Comia agora melhor, preocupava-se com a alimentação e a verdade é que cada dia que passava o seu apetite ia ficando cada vez mais voraz. Permitia-se agora, em momentos de rara intimidade, depois de autênticos repastos para os sentidos que ela carinhosamente lhe preparava, dizer - És tão boa para mim! Mas depressa acrescentava sofregamente com toda a gula e luxúria que aos poucos se libertavam e o dominavam - Quero mais!

Um dia, quis demais. E quis nos seus próprios termos, aqueles em que afinal estava habituado e com os quais pautava até aí a sua vida solitária. E sem que uma única lágrima dela se soltasse, morreu, só, espojado, de barriga para o ar, afogado com o seu próprio vómito de cerveja. Ela, comprou uma flor em sua honra e atirou-a ao mar, esperando que a corrente a levasse para bem longe porque afinal ela era uma sobrevivente e sempre acreditou que em cada esquina, a vida, tal como a morte, espreitam.

segunda-feira, junho 09, 2008

Séries 24


Era cedo. Bem cedo tendo em conta as escassas horas que a vírgula tinha descansado, porque na realidade a noite já se fazia anunciar com os últimos raios de sol. Na madrugada anterior tinha ficado pendurada numa frase que alguém não chegou a acabar,porque se desligara.

E a vírgula deambulava pela casa à procura de uma palavra ou uma frase certa onde se pudesse encaixar. Sabia a importância que tinha, criava uma pausa, um certo momento de reflexão, entre as palavras onde se interpusesse. Dava um ar mais solene, mais pausado, mais maduro, pensava. Porém precisava desesperadamente de palavras para dar um sentido à sua existência. Assim, cansada de estar naquela casa em silêncio, onde os raios de sol que penetraram pelas amplas janelas não tiveram a eficácia para acordar ninguém, decidiu ela própria ir ao encontro daqueles seres adormecidos na esperança de os acordar e, dessa forma, aproveitaria a primeira oportunidade para se aninhar entre as primeiras palavras que se soltassem e que fossem coerentes com a sua condição.

Visitou um a um os três seres que para ali jaziam, dois aninhados na mesma cama e outro que se encontrava sozinho num quarto.

Depositou esperanças no casal. Pensou que seria mais provável que entre dois se pudessem soltar palavras ou frases soltas, como comboios que partiriam e ela apanharia a carruagem certa. E assim ficou, qual caçador furtivo, à espreita primeiro de sons com sentido e com significado. Sentou-se à beira da cama, por cima da cabeceira, nas almofadas, esperando que esta súbita actividade os pudesse despertar. Mas nem assim, eles pareciam seres inanimados e a única prova de que não estavam mortos era o calor que libertavam e uns roncos soltos e descompassados que se soltavam sem ordem e sem ritmo.

Caramba, pensou, um ronco, dois roncos não são lugares para mim. Que diriam as outras vírgulas quando soubessem que ela não tinha conseguido melhor do que aninhar-se entre dois roncos… rooom, room. Não, não era para isso que ela tinha sido criada! Exausta de esperar decidiu ter uma atitude mais arrojada: já que não conseguia entrar na carruagem de palavras iria entrar no avião dos pensamentos. Era isso, iria pôr-se à escuta dos pensamentos daqueles dois e iria ocupar o seu lugar entre os pensamentos, dando uma pausa e um ritmo aos sonhos daquelas criaturas que se encontravam nas profundezas. Pôs-se à escuta, tentou cuidadosamente sintonizar a frequência daqueles dois mas, para seu espanto, daqueles nada saía, nem um pensamento. Nada saía não é completamente verdade, já que eles exalavam um hálito a álcool estragado e, percebeu para infelicidade sua, que aquele álcool e sabe-se lá que mais, era o responsável por todo aquele vazio de ideias e por todo aquele estado de inanição.
Decidiu então ir ao outro quarto com uma esperança cada vez menor de aí dar um sentido à sua tão nobre e já exasperada existência. Quando chegou, o cenário não era assim tão diferente do anterior e receou que tudo se repetisse e que ela se perdesse para sempre. Cautelosa, passou de imediato ao plano dos pensamentos porque já não acreditava que daquela criatura de carapinha eriçada, farta e fofa se soltasse uma única palavra, quanto mais frases. Foi então que decidiu sentar-se naquela cabeleira fofa e confortável e pôs-se novamente à escuta de pensamentos que ela pudesse libertar.
Espreitou e percebeu que ali só pensamentos brancos e poeirentos se poderiam soltar subindo no vapor do álcool que se libertava devagar. Desesperou-se com a ideia de não conseguir concretizar o seu objectivo e ficar ali perdida para sempre emaranhada e presa naqueles cabelos de carapinha. Foi então que um acontecimento novo ocorreu e que lhe deu uma súbita esperança. A criatura levantou-se, infelizmente em silêncio que mais parecia um despertar sonâmbulo, arrastando-a consigo presa naquela selva amazónica de cabelos. Dirigiu-se à cozinha, e com uma voz arrastada, disse simplesmente: “Onde está o chá?”

Foi o pânico, ela, uma vírgula, não tinha lugar naquela frase que ameaçava ser a única que se soltaria daquela boca. Desejou ser um ponto de interrogação, um ponto final ou, até em desespero, um ponto e vírgula, mas a verdade nua e crua é que era apenas e só uma vírgula sem lugar onde cair. Libertou-se com dificuldade dos cabelos e decidiu empoleirar-se nas sobrancelhas, bastante menos perigosas, e espreitar para baixo, completamente debruçada para poder ver a boca e assim saltar e agarrar a palavra certa que a salvaria daquele pesadelo e daquelas ressacas que os três arrastavam nos olhos baços e remelosos. Tanto se debruçou que o horror aconteceu: caiu directa na lata de chá, misturando-se com as ervas secas que também pareciam vírgulas e, como um mal nunca vem só, foi arrastada pela colher que a levaria para a água fervente.
Triste fim para uma pobre e dedicada vírgula, cozida naquela água agora tingida pelas outras espécies de vírgulas e engolida pela boca daquela criatura de cabelo fofo e eriçado. Já que iria ser engolida e que a sua função era a de ritmar as palavras com pausas, nos últimos instantes da sua agonia rogou uma praga: Que ficasse gago para sempre, para saber o poder que uma vírgula teria dentro de si.

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