quarta-feira, março 29, 2006

Pele 12

J estava sentado numa biblioteca e folheava distraidamente uma revista. As imagens impressas trespassavam a sua retina sem deixarem qualquer marca em neurónio que fosse. As letras não passavam de manchas empasteladas no papel brilhante. E assim iria continuar, num estado vegetativo interrompido apenas por fugazes gestos mecânicos que faziam as páginas passarem uma após outra, lentamente. De repente, tomou consciência de si quando finalmente o seu cérebro processou uma imagem que lhe captou a atenção: a de uma jovem provocante, perfumada com fragâncias de Armani, que se aproximava com passos firmes e sedutores, passando por ele, e dirigindo-se a uma mesa onde se encontrava um homem de meia idade, cabelo escorrido e pastoso com sulcos bem vincados pelos dentes do pente encaspado. Tinha olhos encovados, encobertos por lentes grossas e uma pose rígida, austera.

A sua atenção ficou totalmente desperta e decidiu observar com atenção aquele encontro entre dois seres tão diferentes que davam nas vistas pelo contraste. A bela e o monstro, pensou. Imaginou nomes para aquelas duas personagens que o tinham feito sair do limbo. Ela, Lolita. Sim o mito da Lolita estava bem encarnado naquela bela rapariga-mulher. Ele, podia ser Zé, Zé-Ninguém. Satisfeito com este baptismo repentino, e tão apropriado, reposicionou-se na sua cadeira por forma não perder pitada daquele encontro. Desejava ter umas orelhas que se assemelhassem a antenas parabólicas de escuta. Esboçou um sorriso quando se deu conta de que o silêncio que caía sobre a biblioteca lhe permitia, afinal, não ter que se transmutar ou socorrer de um aparelho para escutar as cenas que se iriam desenrolar.

O Zé, quando viu a Lolita aproximar-se, ajeitou a cadeira e sorriu para ela de maneira que ficou claro que a esperava. Sorrir de forma a ficar claro é uma autêntica figura de estilo. Na realidade o Zé quando sorri mostra uma dentadura tão castanho ocre que mais parece coberta de açafrão esturricado. Tirou um livro de uma pasta de couro manchada e retorcida pelo tempo e começou a falar com uma voz suave e doce. J franziu a testa com admiração com esta revelação sonora. Lolita ouvia-o com atenção e parecia mesmo absorver com afinco tudo o que o homem dizia. O Zé falava de equilíbrio químico e das alterações provocadas aos estados de equilíbrio.

J sentia-se confuso com aquele quadro e mais confuso ainda quanto ao tema da conversa. O equilíbrio químico, pensava para si, era algo que não existia nele naquele momento, e deu-se conta que não tirava os olhos da Lolita e que a sua química estava agora toda alterada, com descargas sucessivas de adrenalina. Irritou-se consigo e com o assunto que estava em cima da mesa. Ouvir falar de equilíbrio químico com a visão da Lolita era para si, naquele momento, o cúmulo da ironia.

Lolita, deu-se conta da sua presença e olhou-o pelo canto do olho, sorrindo, com um ar insinuante, desafiador e libidinoso.

J teve uma descarga de adrenalina tão forte que quase caía da cadeira. Nesta aparente queda, teve a visão da sua mulher que olhava para ele com aquele ar reprovador que ele tão bem conhecia. De repente pensou na tese das vidas paralelas: Ser franco e leal com todas as pessoas que conhecia, dar tudo de si aos amigos, à mulher, à família, aos colegas, enfim, ser transparente nas relações com todas elas, nas suas múltiplas vidas, nos seus múltiplos eus que encarnava, mas não entre elas. Uma espécie de compartimentos estanques. Saltaria de compartimento para compartimento em função do lugar e do contexto, sem que nada de um compartimento se pudesse misturar com os outros compartimentos. Seria verdadeiro e coerente em cada compartimento mas os vários compartimentos não tinham que ter coerência entre si. Desta forma, podia até haver lugar ao antagonismo. Seria um antagonismo pacífico, porque compartimentado, selado, hermeticamente fechado e só ele saberia a chave e as passagens entre compartimentos. Claro! era isso! estava resolvido o seu momentâneo dilema moral.

Voltou-se novamente para a Lolita e para o Zé, encorajado pela sua argumentação astuta, genialmente simples e linear, matemáticamente perfeita, quando viu a Lolita levantar-se, caminhar na sua direcção sorrindo para alguém que estaria atrás de si. Olhou para trás e quase caía novamente da cadeira quando se deparou, desta vez não em pensamento, com a sua mulher. Ela também sorria e ele, visivelmente confuso e perdido, tentava encontrar alguma lógica naquele cenário. Viu-as cumprimentarem-se e viu-se apresentado, pela mulher, à Lolita, que afinal não era Lolita mas sim Anaís, imagine-se. Levantou-se desajeitadamente, estremunhado, sentindo-se acordar de um pesadelo, desejando não estar ali, e viu-se a dar dois beijos naquela jovem-mulher com quem tinha acabado de fantasiar. Ela, adivinhando-lhe os pensamentos, qual espia na casa do amor,sussurrou-lhe ao ouvido enquanto o beijava: "As paralelas só se entrecruzam no infinito, mas tu és mortal. Não acredites em vidas paralelas."

J sentiu-se nú, literalmente nú, arrasado por aquela miúda que sorria para ele e para a sua mulher. Aturdido com aquela invasão brutal aos seus pensamentos, achou que nú não seria o termo mais apropriado à situação, seria mais transparente. Sim, transparente, totalmente transparente, só assim se justificaria tamanha devassa ao que de mais íntimo possuía. Olhou para ela e para a mulher que entretanto já se afastavam. Tinha agora a certeza que era transparente e que elas passaram por si como se ele não existisse, e apareceram exactamente para lhe demonstrar o quão transparente ele era. Tentou articular sons que não conseguiam passar por aquele súbito e monstruoso nó que se formara na garganta.
Deixou-se cair pesadamente na cadeira e pegou mecanicamente na revista, que lá sempre estivera ao seu lado, como se aquelas páginas pudessem cobrir todo o seu ser tão violentamente desnudado. Enquanto fazia o movimento de puxar para si aquelas páginas agora desalinhadas, parou numa frase que lhe chamou a atenção: “O que ocultamos, é o que somos.” Olhou para a porta de saída da biblioteca e viu-as afastarem-se sorridentes e cúmplices. Apertou as pobres folhas da revista com tanta força que elas amarrotaram, cederam e rasgaram-se. J olhou para o que restava da revista como se estivesse a olhar para si próprio. Pousou o amontoado de papéis enxovalhados e deambulou pela biblioteca gelado por aquelas frases assassinas que surgiram tão de repente quanto aquelas duas mulheres se haviam afastado, juntas, como dois segmentos de recta paralelos.

1 comentário:

hesseherre disse...

Texto francamente vigoroso, induz nossosd olhos a acompanhar a trama, antegozando um final feliz. Que o pobre J. não percebeu: sua mulher e a ninfa eram na verdade duas lésbicas...duas paralelas tentando encontrar-se.

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