A vida corria com a cadência de sempre e ele, que se considerava um auto-suficiente, um solitário, um sobrevivente de outras vidas, costumava cantar amiúde uma canção do Manu Chao, bem latina, bem ritmada e quente para se aquecer nas noites frias, que dizia:
Me llaman el desaparecido
Cuando llega ya se ha ido
Volando vengo, volando voy
Deprisa deprisa a rumbo perdido
Cuando me buscan nunca estoy
Cuando me encuentran yo no soy
El que está enfrente porque ya
Me fui corriendo más allá
Me dicen el desaparecido
Fantasma que nunca está
Me dicen el desagradecido
Pero esa no es la verdad
Yo llevo en el cuerpo un dolor
Que no me deja respirar
Llevo en el cuerpo una condena
Que siempre me echa a caminar
Yo llevo en el cuerpo un motor
Que nunca deja de rolar llevo en el alma un camino
Destinado a nunca llegar
Cuando me buscan nunca estoy
Cuando me encuentran yo no soy
El que esta enfrente por que yame fui corriendo mas alla
Me dicen el desaparecido
Cuando llega ya se ha ido
E era nesta aparente contradição que vivia, a contradição de querer, de dar, de receber e de não estar. É, sentia-se por vezes um espectro, um fantasma que marcava os lugares por onde passava mas que era incapaz de se envolver neles, uma espécie de odor que pairava no ar que, por vezes, chegava até a impregnar. Mas, vá-se lá saber porquê, apavorava-o cheiros de tocas e de pessoas que se tornavam demasiado familiares. Preferia continuar solitário sem ter hábitos rotineiros com ele e com os outros.
Porém, porque a vida não é linear e porque, afinal, por muito lobo que se seja, há sempre lugar para o imprevisto, para a descoberta, para a rendição perante um cheiro novo, deu por si a cantar outras músicas, outras letras, outros ritmos igualmente quentes mas muito mais aconchegantes para o seu espírito menos rebelde e solitário do que imaginara.
Cedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no tecto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que é nosso.
São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo o que é nosso
é excessivo.
E a minha boca,
de tão rasgada,
corre-te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz-te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.
Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.
E mais nocturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa.
Sem aviso viu-se a procurar silêncios, não os silêncios que costumava ter na solidão, mas os silêncios cúmplices, os mais dificeis de ouvir, os mais confortáveis. Aqueles que se partilham no sono.
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