quarta-feira, dezembro 01, 2010
quarta-feira, novembro 24, 2010
Social 26
sábado, novembro 13, 2010
Ambiências 55
quinta-feira, novembro 04, 2010
20-10-2010
quinta-feira, setembro 30, 2010
Social 25
As outras nações de Moçambique? (texto de Mia Couto)
Os eventos de Setembro podem indiciar que a Frelimo pretende reaproximar da própria Frelimo. Chama-se o que se quiser ao volte face que o Conselho de Ministros. Eu acho que essa mudança foi corajosa, vital e indiciadora de outras mudanças. Essa mudança pode salvar todas as nações da nação moçambicana. E pode salvar a própria Frelimo como força condutora dos destinos de uma pátria que é a única que, nós, moçambicanos temos.
2- Este acordar para uma realidade não tocou apenas os dirigentes de partidos. No dia dos tumultos, muitos cidadãos de Maputo foram sacudidos pela surpresa. Morando em bairros ricos, esses cidadãos há muito que confundiam a nação com a reduzida geografia da cidade por onde circulam. O lugar dos pobres era, para eles, um cenário longínquo, uma fachada apenas visível da janela das viaturas com que, apressadamente, atravessam as chamadas “periferias”. Aos poucos, a nação destes compatriotas se resumiu ao circuito das grandes avenidas e dos quarteirões privilegiados do cimento. É fácil amar uma pátria assim: mais ou menos limpa, mais ou menos servida, mais ou menos cosmopolita. Para os cidadãos “deste” Moçambique, os motins surgiram como uma espécie de invasão. Os desordeiros estavam avançando sobre a sua “nação”. Xilunguíne estava sendo ameaçada pelos bárbaros suburbanos.
De repente, os habitantes da nação cimentada acordaram para a existência de uma outra nação maior. De súbito, lembraram-se que havia uma outra cidade fora da cidade, que havia uma pobreza que não morava apenas nos “distritos”.
O fumo dos pneus teve o efeito inverso do que se poderia prever: clareou céus e rasgou horizontes. Os pobres deixaram de ser apenas assunto dos workshops. Os pobres saltaram dos seminários em luxuosos hotéis para a realidade do dia-a-dia. Os pobres podem fazer parar o país dos outros. Mesmo que para isso acabem ficando mais pobres. Para quem tem pouco “amanhã” esse esbanjar de futuro valia a pena.
Neste sentido, no dia primeiro de Setembro Moçambique deu uma cambalhota. Dito de outro modo, a percepção que um certo Moçambique tem de si mesmo foi colocada de pernas para o ar. A periferia virou o centro. A pobreza falou por si mesma, com seus recursos pobres, com a sua esperança empobrecida. As cicatrizes dos pneus em chamas não sobreviverá nas estradas da capital.
Espero que as lições desse transbordar sobrevivam dentro de nós como um alerta que algo precisa mudar nas duas nações.
segunda-feira, setembro 27, 2010
Pele 31
quinta-feira, setembro 23, 2010
Sugestão 12
terça-feira, setembro 21, 2010
Intimidades 21
quinta-feira, setembro 16, 2010
Social 24
A recente crise que Maputo viveu teve origem no enorme descontentamento da população. Os elevados níveis de pobreza aliados ao disparo dos preços de bens essenciais despoletaram a revolta. A revolta foi apelidada pelos responsáveis políticos como vandalismo e as manifestações consideradas ilegais.
Importa esclarecer que as manifestações seriam sempre ilegais porque não foram convocadas por nenhuma associação legalmente constituída, mas sim por um movimento espontâneo e popular que surgiu em mensagens sms.
Importa ainda esclarecer que cerca de 90% da população é formalmente desempregada e vive de biscates e que cerca de 45% da população é menor.
Importa também esclarecer que a violência vivida naqueles dias resultou em grande parte da forte e brutal repressão policial que cumpria ordens. De facto, dias depois houve testemunhos de polícias que confessaram que eles também queriam estar no outro lado da barricada porque eles também passam mal, apenas cumpriam ordens superiores.
É necessário ainda referir que o salário mínimo ao câmbio actual é de cerca de 50 euros. Um polícia em início de carreira tem este salário e um polícia com 10 anos de serviço ganha menos de 100 euros.
Os factores que contribuiram para esta revolta foi o aumento desmesurado do custo de vida. No último ano, o metical desvalorizou face ao euro, ao dólar e ao rand ( moeda fundamental em Moçambique já que a maioria das importações vêm da África do Sul e Moçambique importa quase tudos os alimentos ) cerca de 40%. Este facto aliado ao aumento dos preços a nível internacional tornou a situação incomportável para a maioria da população.
segunda-feira, setembro 13, 2010
Social 23
domingo, maio 23, 2010
Retratos 31
quarta-feira, maio 12, 2010
Social 22
Partilho convosco uma notícia acabada de sair sobre um estudo apresentado ontem, no Porto, no 10º Congresso da Federação Europeia de Sexologia:
domingo, maio 09, 2010
Social 21
Partilho aqui um texto do Mia Couto, a propósito do desencanto com o país que o fez nascer:
Havia um país em que tudo funcionava na base dos dez por cento.
Era o médico: - Mandas-me esse doente e eu pago-te 10%.
Era a criança de rua para um candidato a criança de rua: - Deixo-te guardar carros na minha área e dás-me 10 por cento.
Era o chefe: - Deixo a vossa empresa ganhar o concurso e vocês retribuem com 10 por cento.
Era o polícia: - Estou a telefonar para lembrar aquela multa que perdoei... recorde-se do combinado.
Era o director: - Coloquei-te no projecto como técnico... já sabes, não é?
Era o outro chefe em sussurro para o empresário estrangeiro: - Podem investir no nosso país mas... há comissões, é normal...
Tudo parecia correr bem, no país dos dez por cento. Na aparência, pelo menos... As pessoas trabalhavam a dez por cento, sonhavam nessa percentagem, viviam nessa escassa perspectiva. Tudo a dez por cento.
Mesmo a esperança a ser investida no futuro ocupava apenas uma fracção do coração.
Certo dia, porém, alguém pensou tomar uma iniciativa a 100 por cento. Meu dito, meu feito. O homem arregaçou as mangas e trabalhou.
E logo os amigos, familiares e colegas desataram a rir. Que o esforço seria em vão. Porque, nesse país, o construir era entendido como "comer". E ninguém pode "comer" sozinho. Viria o fiscal e pediria 10 por cento. Viria o camarário e pediria 10% para as licenças. Viria o ministerial e exigiria 10 por cento. Ou mais.
No final, ele acabaria por ficar com menos de 10 por cento das ideias, e do esforço aplicado resultaria quase nada. Que no país dos dez por cento o melhor é não fazer. O melhor é não construir, nem trabalhar. O que é bom e saudável é parasitar os que querem fazer. Sobretudo, os que querem fazer a cem por cento.
E assim, embora aparentando toda a normalidade, o país a dez por cento padecia de uma doença fatal. O problema é que um país a dez por cento só pode ser dez por cento país!
O terceiro mundo está muito mais perto de alguns europeus do que eles próprios imaginam.
domingo, maio 02, 2010
Social 20
domingo, abril 25, 2010
Social 19
Há dias, em conversa com um amigo moçambicano, de uma geração mais jovem e informada, que trabalha no sector da saúde, dizia-me, para meu espanto e arrepio, que o número de crianças violadas e infectadas com doenças sexualmente transmissíveis que entram todos os dias no Hospital Central de Maputo, é assustador. E explicou-me as causas que dão origem a tão desumana realidade: a crença irracional e ignorante.
quarta-feira, abril 14, 2010
Ambiências 54
Sem nada para fazer, passeei pela aldeia que entretanto tinha caído em peso à volta do chapa para gozar a novidade do dia. A excitação era geral e aumentou quando viram que no chapa vinham uns molungos (brancos no dialecto changana). As crianças pediam para serem fotografadas, os adultos pediam dinheiro, enfim, um cenário quotidiano que há muito me habituei.
Chegámos ao pôr-do-Sol. À nossa frente uma extensa e fina ponte que deixava circular apenas uma viatura. Uns quilómetros ao fundo, um pequeno pedaço de terra que começava a ganhar definição: A Ilha de Moçambique.
Chegádos à ilha, rapidamente percebemos que esta está dividida em duas zonas, a zona colonial, onde os vestígios de construção colonial estão fortemente presentes e uma outra zona, densamente povoada pelos habitantes locais e onde as palhotas e barracas de tectos de zinco abundam em ruelas sujas e estreitas.
A zona colonial apresenta imensas zonas com casas degradadas, ocupadas por famílias numerosas. A espaços veêm-se casas reabilitadas que deixam adivinhar interiores de tectos altos e divisões espaçosas. As casas aqui tem uma semelhança enorme com as casas senhoriais alentejanas, paredes grossas, caiadas de branco ou em tons ocres, com as faixas de tinta azul ou amarela que rodeiam as janelas e as portas.
Na praça principal, que rodeia a antiga casa do governador, hoje um museu em reabilitação paga por avultados fundos da cooperação portuguesa, existe o típico largo do coreto, sobranceiro ao mar que se encontra a poucos metros.
A ilha está recheada de marcas arquitéctónicas tipicamente portuguesas, igrejas, casas e ruas com marcas do sul de Portugal, o Alentejo. Até os azulejos dos interiores das cozinhas são iguais aos azulejos das casas senhoriais alentejanas com padrões geométricos que criam ilusões ópticas. Os mesmos que vi na minha infância quando ia a Évora passar os natais.
Noutra zona, no cimo de um terraço de uma casa magnífica, agora transformada num simpático e acolhedor restaurante italiano, avista-se numa das ruas principais uma construção imponente mas infelizmente muito degradada: o hospital da Ilha. O aspecto interior faz temer pela saúde dos habitantes da ilha.
Calcorreando as ruelas da ilha cruzamo-nos com uma população maioritariamente muculmana, simpática e hospitaleira. Numa ruela descubro uma madrassa, uma escola muçulmana, onde os meninos desde pequenos aprendem o islão.
A professora convida-me a entrar, explica-me que trabalha com um grupo numeroso de crianças orfãs e assisto a uma demonstação dos meninos. Começam a recitar de cor os textos do Alcorão. Não percebo uma palavra, mas percebo que falam fluentemente, sinal de que a lição está bem aprendida.
E passeando naquelas ruas rapidamente se percebe que o ritmo do tempo é vagaroso, as pessoas pouco têm que fazer e matam o tempo esperando que qualquer coisa surja, qualquer coisa lhes dê motivos para se ocuparem. Parecem de facto ancorados num tempo que flui lentamente, sem sonhos e sem grandes novidades que os animem.
domingo, fevereiro 14, 2010
Social 18
Foto de Francisco Máximo
Nos últimos anos, três ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da maneira como trabalhamos: a avaliação individual do desempenho, a exigência de “qualidade total” e o outsourcing. O fenómeno gerou doenças mentais ligadas ao trabalho. Christophe Dejours, especialista na matéria, desmonta a espiral de solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.
Psiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção – uma das raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e doença mental. Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à Beethoven” e olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa redondos, falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto, sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura.
Claro que no outro extremo da escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France Télécom.
Depois da conferência, o médico e cientista falou sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos como a destruição pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante a doença mental.
O suicídio ligado ao trabalho é um fenómeno novo?
Afecta certas categorias de trabalhadores mais do que outras?
Na minha experiência, há suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem, entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos serviços, nas actividades industriais, na agricultura.
No passado, não havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja actividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.
O que é que mudou nas empresas?
A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.”
Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…
Mas o assédio no trabalho é novo?
Qual é o perfil das pessoas que são alvo de assédio?
São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado. E em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e algo ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade.
Um único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho todo. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a fazer essa formação.
Uma formação para o assédio?
Está a descrever um cenário totalmente nazi...
Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros 14 mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, uma aprendizagem do assédio.
Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se dessa maneira.
Voltando ao perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho?
É. O que vemos é que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento pessoal – sem um envolvimento total.
Isso gera, aliás, um dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos emancipar e realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente contraditória.
E os sindicatos?
Como distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras causas?
É uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho. Mas há casos em que é indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se suicida, também não há dúvidas – são documentos aterradores. Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é possível. Um caso recente – e uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt, perto de Paris.
Quando é que isso aconteceu?
A viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador” [conceito do direito da segurança social em França], por não ter tomado as devidas precauções.
Mesmo assim, as empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho.
Mas como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio? Só acontece a pessoas com determinada vulnerabilidade?
Era uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças óptimas e um marido excepcional. Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer na sua infância.
Aconteceu sem pré-aviso?
O caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais frequente nas grandes empresas?
Quantas pessoas se suicidam por ano, em França e noutros países?
Na Suécia, por exemplo, há provavelmente tantos suicídios no trabalho como em França. Mas não há debate. Em muitos países não há debate, porque não existe esse espaço clínico, essa nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver em França. De facto, a França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O debate francês interessa muita gente, mas também mete muito medo.
Em França, foi feito um único inquérito, há quatro anos, pela Inspecção Médica do Trabalho, em três departamentos [divisões administrativas], passando pelos médicos do trabalho, e chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos. É provavelmente um valor subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre 300 e 400 suicídios no trabalho por ano.
Falou de “qualidade total”. O que é exactamente?
É como se em vez de olhar para o conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se contasse o número de artigos que esse jornalista escreveu. Há quem escreva artigos todos os dias, mas enfim... é para contar que houve um acidente de viação ou outra coisa qualquer. Uma única entrevista, como esta por exemplo, demora muito mais tempo a escrever e, para fazer as coisas seriamente, vai implicar que o jornalista escreva entretanto menos artigos. Hoje em dia, julga-se os cientistas pelo número de artigos que publicam. Mas isso não reflecte o trabalho do cientista, que talvez esteja a fazer um trabalho difícil e não tenha publicado durante vários anos porque não conseguiu obter resultados.
Passados uns tempos, surgem queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço] está a degradar-se. Então, para além das avaliações, os gestores começam a controlar a qualidade e declaram como objectivo a “qualidade total”. Não conhecem os ofícios, mas vão definir pontos de controlo da qualidade. É verdadeiramente alucinante.
Para além de que declarar a qualidade total é catastrófico, justamente porque a qualidade total é um ideal. É importante ter o ideal da qualidade total, ter o ideal do “zero-defeitos”, do “zero-acidentes”, mas apenas como ideal.
Mesmo uma central nuclear nunca funciona como previsto. Nunca. Por isso é que precisamos de “trabalho vivo”. A qualidade total é um contra-senso porque a realidade se encarrega de fazer com que as coisas não funcionem de forma ideal. Mas o gestor não quer ouvir falar disso.
Isso é extremamente grave.
Há muitos suicídios entre os médicos?
Cada vez mais. Há especialidades com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos reanimadores. Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a esse ponto.
É uma situação insuportável e há médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram medo de que isso se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente morreu. Matei o doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com esta situação. Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que encontram nas operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece qualquer coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o acordou correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O cirurgião nunca admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu em sangue.
Os médicos sempre foram considerados uma classe muito solidária…
Foram. Já não são. Eu trabalhei anos nos hospitais, e adorava trabalhar lá, porque existia um espírito de equipa fantástico. Éramos felizes no nosso trabalho. Hoje, as pessoas não querem trabalhar nos hospitais, não querem fazer bancos, tentam safar-se. São todos contra todos. Bastaram uns anos para destruir a solidariedade no hospital. O que aconteceu é aterrador.
O que é importante perceber é que a destruição dos elos sociais no trabalho pelos gestores nos fragiliza a todos perante a doença mental. E é por isso que as pessoas se suicidam. Não quer dizer que o sofrimento seja maior do que no passado; são as nossas defesas que deixaram de funcionar.
Portanto, as ferramentas de gestão são na realidade ferramentas de repressão, de dominação pelo medo.
Sim, o termo exacto é dominação; são técnicas de dominação.
Hoje, nos hospitais em França, a qualidade do trabalho não aumentou – diminui. O desempenho supostamente melhorou, mas isso não é verdade, porque não se toma em conta o que está a acontecer do lado do trabalho colectivo.
É uma questão difícil. Acho que qualquer método de organização do trabalho é ao mesmo tempo um método de dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há 40 anos que os sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do trabalho visam uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade, de gestão. Mas não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha acompanhada de um sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão cumprir as ordens.
Há tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um método de trabalho.
Contudo, não penso que a intenção do patronato (francês, em particular), nem dos homens de Estado seja instaurar o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem métodos de dominação, através da organização do trabalho que, de facto, destroem o mundo social.
No ohnismo, trata-se de fazer com que pessoas beneficiem a empresa oferecendo a sua inteligência e os conhecimentos adquiridos através da experiência. Para o fazer, nos anos 1980, introduziu-se algo de totalmente novo: os chamados “círculos de qualidade”.
O sistema japonês foi realmente uma novidade em relação ao taylorismo, porque ensinou as pessoas a colaborar sem as obrigar a obedecer – dando-lhes prémios, pelo contrário. Quando uma sugestão de uma pessoa dá lucro, a empresa faz o cálculo do dinheiro que a empresa ganhou com a ideia e reverte para o trabalhador uma parte desse lucro. Trata-se de prémios substanciais.
Mas há uma batota: os círculos de qualidade podiam durar horas, todos os dias, reunindo as pessoas a seguir ao trabalho para alimentar a caixinha das ideias. Todos se envolviam porque, por um lado, uma ideia que permitisse melhorar a produção valia-lhes chorudos prémios, mas também porque quem participava neles tinha um emprego vitalício garantido na empresa.
O sistema foi exportado para a Europa, os EUA, etc. porque durante uns tempos, a qualidade melhorou de facto. Mas a dada altura, as pessoas no Japão trabalhavam tanto que começou a haver mortes por karōshi [literalmente “morte por excesso de trabalho”].
O que é o karōshi?
O mundo do trabalho no Japão é alucinante. Há raparigas que entram nas fábricas de electrónica, por exemplo, e que são utilizadas entre os 18 e os 21 anos – porque aos 21 anos, já não conseguem aguentar as cadências de trabalho.
As famílias confiam-nas às empresas por esses três anos, durante os quais elas se entregam de corpo e alma ao trabalho. E nalguns casos, a empresa compromete-se a casar a rapariga no fim dos três anos. É mesmo um sistema totalitário. E mais: essas jovens trabalham 12 a 14 horas por dia e depois vão para uns dormitórios onde há uma série de gavetões – cada um com cama e um colchão –, deitam-se na cama e fecha-se o gavetão. Dormem assim, empilhadas em gavetões. Três anos… em gavetões… é preciso ver para crer.
Mas uma coisa destas não é aplicável na Europa
Não, pelo menos em França nunca funcionaria. Ainda não chegámos lá, disso tenho a certeza.
Mas acha que poderia acontecer?
Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado?
Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade.
Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas.
E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre. E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.
Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo.
Para o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto.
Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente
Como é que ainda fica espaço para a paixão e para o amor? nos dias de hoje, as relações tendem para este cartoon, que achei fantástico. Feliz dia dos namorados!