segunda-feira, setembro 29, 2008

Séries 29


Por questões de trabalho, tenho viajado bastante diariamente nas estradas de Moçambique. Na sexta-feira assisti, infelizmente, a uma cena completamente surreal por parte da polícia moçambicana.

Era noite, cerca das 21:00 e vinha de Chimoio para a Beira. Viajar de noite nestas estradas é uma aventura, porque os moçambicanos andam a pé e de bicicleta ao longo da estrada como se estivessem a passear em casa. E andam sem qualquer tipo de iluminação ou sinalização. O motorista que me acompanha diariamente, felizmente, é cauteloso e passa a viagem toda a buzinar.

Quando estávamos a passar por uma pequena cidade já perto da Beira, Dondo, passa por nós um carro meio tuning em alta velocidade mesmo em frente a um posto policial. Cerca de 2 km à frente do local da ultrapassagem, apercebemo-nos que o carro está parado no meio da estrada e a fazer marcha-atrás. Aproximamo-nos devagar e quando estamos a chegar vemos um corpo de um homem estendido no meio da estrada, projectado para a outra faixa de rodagem, numa posição tão torcida que se percebia que haveriam várias fracturas nas pernas, talvez coluna e sabe-se lá mais onde.

“Porra, o gajo foi atropelado!” diz o motorista. O condutor do carro da frente, um jovem moçambicano, sai do carro, olha para o homem e fica em pânico sem saber o que fazer.
“tem que afastar o homem do meio da estrada e colocá-lo na berma!” diz o motorista.
“estou a pedir ajuda” diz o jovem. “Estou a pedir que chamem ajuda”. O motorista diz que sim, inverte a marcha e dirige-se rapidamente para o posto policial que havia 2 km atrás.

Chegamos, vemos imediatamente um polícia e o motorista conta-lhe o sucedido.
“tá a respirar?” pergunta o polícia.
“Está, não está ainda morto” diz o motorista. “vão lá e chamem uma ambulância”
“Não posso sair daqui agora” diz o polícia “para irmos lá depois tínhamos que fazer medições…”
Espantado com a conversa intervenho pela primeira vez “ Mas chame uma ambulância! O homem precisa de ir para o hospital”
“ O condutor que o atropelou é que tem a obrigação de o levar para o hospital!” afirma o polícia como se não fosse nada com ele.
“ mas o homem está todo partido, precisa de tratamento médico” insisto.
“o condutor que o leve!” reafirma o polícia.
“Espero que você nunca precise de uma ambulância! Vamos embora que já estamos atrasados!” digo eu para o motorista, zangado e incrédulo com a atitude daquele animal.

E quando chegamos ao local do acidente, ajudamos a transportar aquele corpo todo disforme para o carro. Não sei se o matámos enquanto o transportávamos para o carro… no final e para rematar, diz o motorista: “Vá lá, o homem teve sorte, o condutor até parou, que a esta hora, xii… ninguém pára!”

quarta-feira, setembro 17, 2008

Ambiências 43



Quis a vida que o trabalho me trouxesse de novo para as províncias moçambicanas que rodeiam o Parque Nacional da Gorongosa. Claro que estando tão perto, impunha-se uma visita, duas visitas, tantas quantos os fins-de-semana me permitirem enquanto por aqui andar nas redondezas.

Há uns dias atrás pensava nas memórias que vamos colectando ao longo da vida e nos encontros e desencontros que se estabelecem entretanto. Ter regressado ao parque após uns meses de ausência foi uma vivência aconchegante. Fui recebido com enorme carinho e calor e aproveitei para matar saudades de alguns bradas e sisters. Abraços, confidências, desabafos, alegrias e sobretudo amizade.
Claro que se impunha uma festa de arromba pela noite dentro e uns safaris para voltar a encher a alma daquela beleza natural.

Há gente boa, muito boa! Inclusive aqueles e aquelas que nos dizem "Você não presta mesmo! Atão não vai lá se despedir? Tem lá 2M!"

Até, gente boa!

quinta-feira, setembro 11, 2008

Pele 25



A vida corria com a cadência de sempre e ele, que se considerava um auto-suficiente, um solitário, um sobrevivente de outras vidas, costumava cantar amiúde uma canção do Manu Chao, bem latina, bem ritmada e quente para se aquecer nas noites frias, que dizia:


Me llaman el desaparecido
Cuando llega ya se ha ido
Volando vengo, volando voy
Deprisa deprisa a rumbo perdido
Cuando me buscan nunca estoy
Cuando me encuentran yo no soy
El que está enfrente porque ya
Me fui corriendo más allá
Me dicen el desaparecido
Fantasma que nunca está
Me dicen el desagradecido
Pero esa no es la verdad
Yo llevo en el cuerpo un dolor
Que no me deja respirar
Llevo en el cuerpo una condena
Que siempre me echa a caminar
Yo llevo en el cuerpo un motor
Que nunca deja de rolar llevo en el alma un camino
Destinado a nunca llegar
Cuando me buscan nunca estoy
Cuando me encuentran yo no soy
El que esta enfrente por que yame fui corriendo mas alla
Me dicen el desaparecido
Cuando llega ya se ha ido


E era nesta aparente contradição que vivia, a contradição de querer, de dar, de receber e de não estar. É, sentia-se por vezes um espectro, um fantasma que marcava os lugares por onde passava mas que era incapaz de se envolver neles, uma espécie de odor que pairava no ar que, por vezes, chegava até a impregnar. Mas, vá-se lá saber porquê, apavorava-o cheiros de tocas e de pessoas que se tornavam demasiado familiares. Preferia continuar solitário sem ter hábitos rotineiros com ele e com os outros.

Porém, porque a vida não é linear e porque, afinal, por muito lobo que se seja, há sempre lugar para o imprevisto, para a descoberta, para a rendição perante um cheiro novo, deu por si a cantar outras músicas, outras letras, outros ritmos igualmente quentes mas muito mais aconchegantes para o seu espírito menos rebelde e solitário do que imaginara.
Cedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no tecto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que é nosso.
São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo o que é nosso
é excessivo.
E a minha boca,
de tão rasgada,
corre-te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz-te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.
Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.
E mais nocturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa.
Sem aviso viu-se a procurar silêncios, não os silêncios que costumava ter na solidão, mas os silêncios cúmplices, os mais dificeis de ouvir, os mais confortáveis. Aqueles que se partilham no sono.
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