Há cerca de duas semanas,
num passeio pela província de Gaza, deparei-me com um cenário e com uma
comunidade verdadeiramente espetaculares. No meio de uma picada de quilómetros,
onde o cenário era apenas mato, quilómetros de mato, onde a espaços se passava
por pequenos lugarejos com meia dúzia de casas, aparece de repente e sem aviso,
uma igreja no meio de um espaço lindíssimo e bem cuidado.
É com certeza uma das
igrejas mais bonitas e bem preservadas que já vi neste país. A comunidade que
lá estava a celebrar uma missa era de um calor e de uma simpatia que comovia.
Fizeram questão de nos incluir na sua celebração e de nos receber com sorrisos
e de mãos estendidas. Não para pedir, para nos incluir, de mãos dadas, nos seus
rituais de paz.
Este pequeno apontamento
sobre esta igreja e esta comunidade não advém de nenhuma devoção particular
pelo catolicismo, mas vem a propósito de uma frase proferida por Mia Couto num
discurso feito esta semana numa Gala para atribuição do melhor de Moçambique.
Um discurso muito emotivo e muito importante na atual situação social e
política que se vive no país.
A frase, era seguinte: “O melhor de
Moçambique são os que anonimamente constroem a nação moçambicana sem tirar
vantagem de serem de um partido, de uma família, de uma farda.”
Para que esta
frase não seja descontextualizada, deixo-vos aqui todo o discurso.
“Pensei
bastante se estaria ou não presente nesta cerimónia. A razão para essa dúvida
era a seguinte: há três dias a minha família foi alvo de várias e insistentes
ameaças de morte. Essas ameaças persistiram e trouxeram para toda a nossa
família um clima de medo e insegurança. A intenção foi-se revelando clara,
depois de muitos telefonemas anónimos: a extorsão de dinheiro. A mesma
criminosa ameaça, soubemos depois, já bateu à porta de muitos cidadãos de
Maputo.
Poderíamos
pensar que essas intimidações se reproduzem a tal escala que acabam por se
desacreditar. Mas não é possível desvalorizar este fenómeno. Porque ele sucede
num momento em que, na capital do país, pessoas são raptadas a um ritmo que não
pára de crescer. Esses crimes reforçam um sentimento de desamparo e
desprotecção como nunca tivemos nos últimos vinte anos da nossa história.
Esses
que são raptados não são os outros, são moçambicanos como qualquer outro cidadão.
De cada vez que um moçambicano é raptado, é Moçambique inteiro que é raptado. E
de todas as vezes, há uma parte da nossa casa que deixa de ser nossa e vai
ficando nas mãos do crime. Neste confronto com forças sem rosto nem nome, todos
perdemos confiança em nós mesmos, e Moçambique perde a credibilidade dos
outros.
Esses sequestros estão nos cercando por dentro como se houvesse
uma outra guerra civil, uma guerra que cria tanta instabilidade como uma
qualquer outra acção militar, qualquer outra acção terrorista.
Este é
um fenómeno que atinge uma camada socialmente diferenciada do nosso país. Mas o
mesmo sentimento de medo percorre hoje, sem excepção, todos os habitantes de
Maputo, pobres e ricos, homens e mulheres, velhos e crianças que são vítimas
quotidianas de crimes e assaltos.
Eu
falo disto, aqui e agora, porque uma cerimónia destas nos poderia desviar do
que é vital na nossa nação. Não podemos esquecer que o nosso destino colectivo
se decide hoje sobretudo no centro do País, nessa fronteira que separa o
diálogo do belicismo. E todos nós queremos defender essa que é a conquista
maior depois da independência nacional: a Paz, a Paz em todo o país, a Paz no
lar de cada moçambicano.
Se invoquei a situação que se vive hoje em
Maputo é porque outras guerras, mais subtis e silenciosas, podem estar a
agredir Moçambique e a roubar-nos a estabilidade e que tanto nos custou
conquistar.
Caros
amigos
Estamos
celebrando nesta Gala algo que, certamente, possui a intenção positiva de
valorizar o nosso país. Mas para usufruirmos o que aqui está a ser exaltado, as
melhores praias, os melhores destinos turísticos, precisamos de saber o ver o
que nos cerca. Na realidade, e em rigor, o melhor de Moçambique não pode ser
seleccionado em concurso. O melhor de Moçambique são os moçambicanos de todas
etnias, todas as raças, todas as opções políticas e religiosas. O melhor de
Moçambique é a gente trabalhadora anónima que, todos os dias, atravessa a
cidade em viaturas transportados em condições que são uma ofensa à vida e à dignidade
humanas.
O
melhor de Moçambique são os camponeses que embalam à pressa os seus haveres
para fugirem das balas. O melhor de Moçambique são os que, mesmo não tendo
dinheiro, pagam subornos para não serem incomodados por agentes da ordem cuja
única autoridade nasce da arrogância.
O
melhor de Moçambique são os que anonimamente constroem a nação moçambicana sem
tirar vantagem de serem de um partido, de uma família, de uma farda.
Os
melhores de Moçambique não precisam sequer que os outros digam que são os
melhores. Basta-lhe serem moçambicanos, inteiros e íntegros, basta-lhes não
sujarem a sua honra com a pressa de se tornarem ricos e poderosos.
Os
melhores de Moçambique não precisam de grandes discursos para acreditarem numa
pátria onde se possa viver sem medo, sem guerra, sem mentira e sem ódio.
Precisam, sim, de acções claras que eliminem o crime e a corrupção. Porque a
par deste galardão que distingue o melhor de Moçambique há um outro galardão,
invisível mas permanente, que premeia o pior de Moçambique. Todos os dias, o
pior de Moçambique é premiado pela impunidade, pela cumplicidade e pelo
silêncio.
Caros
amigos,
Disse,
no início, que hesitei em estar presente nesta gala. Mas pensei que me
competia, junto com todos vocês, a obrigação de construir um evento que fosse
para além das luzes e das mediáticas aparências. Nós queremos certamente que
esta festa tenha uma intenção e produza uma diferença. E esta celebração só
terá sentido se ela for um marco na luta pela afirmação de valores morais e
princípios colectivos. Para que a nossa vida seja nossa e não do medo, para que
as nossas cidades sejam nossas e não dos ladrões, para que no nosso campo se
cultive comida e não a guerra, para que a riqueza do país sirva o país
inteiro.”