As outras nações de Moçambique? (texto de Mia Couto)
Os eventos de Setembro podem indiciar que a Frelimo pretende reaproximar da própria Frelimo. Chama-se o que se quiser ao volte face que o Conselho de Ministros. Eu acho que essa mudança foi corajosa, vital e indiciadora de outras mudanças. Essa mudança pode salvar todas as nações da nação moçambicana. E pode salvar a própria Frelimo como força condutora dos destinos de uma pátria que é a única que, nós, moçambicanos temos.
2- Este acordar para uma realidade não tocou apenas os dirigentes de partidos. No dia dos tumultos, muitos cidadãos de Maputo foram sacudidos pela surpresa. Morando em bairros ricos, esses cidadãos há muito que confundiam a nação com a reduzida geografia da cidade por onde circulam. O lugar dos pobres era, para eles, um cenário longínquo, uma fachada apenas visível da janela das viaturas com que, apressadamente, atravessam as chamadas “periferias”. Aos poucos, a nação destes compatriotas se resumiu ao circuito das grandes avenidas e dos quarteirões privilegiados do cimento. É fácil amar uma pátria assim: mais ou menos limpa, mais ou menos servida, mais ou menos cosmopolita. Para os cidadãos “deste” Moçambique, os motins surgiram como uma espécie de invasão. Os desordeiros estavam avançando sobre a sua “nação”. Xilunguíne estava sendo ameaçada pelos bárbaros suburbanos.
De repente, os habitantes da nação cimentada acordaram para a existência de uma outra nação maior. De súbito, lembraram-se que havia uma outra cidade fora da cidade, que havia uma pobreza que não morava apenas nos “distritos”.
O fumo dos pneus teve o efeito inverso do que se poderia prever: clareou céus e rasgou horizontes. Os pobres deixaram de ser apenas assunto dos workshops. Os pobres saltaram dos seminários em luxuosos hotéis para a realidade do dia-a-dia. Os pobres podem fazer parar o país dos outros. Mesmo que para isso acabem ficando mais pobres. Para quem tem pouco “amanhã” esse esbanjar de futuro valia a pena.
Neste sentido, no dia primeiro de Setembro Moçambique deu uma cambalhota. Dito de outro modo, a percepção que um certo Moçambique tem de si mesmo foi colocada de pernas para o ar. A periferia virou o centro. A pobreza falou por si mesma, com seus recursos pobres, com a sua esperança empobrecida. As cicatrizes dos pneus em chamas não sobreviverá nas estradas da capital.
Espero que as lições desse transbordar sobrevivam dentro de nós como um alerta que algo precisa mudar nas duas nações.