terça-feira, março 20, 2012

Ambiências 59

Mombaça, Quénia, Dezembro de 2011


(composição de duas fotografias)


Aquando da minha viagem no Quénia no final de 2011, tinha previsto um itinerário que partiria de Nairobi até ao Oceano Indico, com destino a Mombaça.  Depois de ter pesquisado várias opções, que passariam por avião ou carro, soube de uma terceira opção, o comboio.

Entusiasmado com a ideia de uma viagem de comboio que permitiria viajar e ver regiões mais recônditas do Quénia procurei saber mais informações sobre esta opção. Após algumas pesquisas e trocas de emails com amigos que vivem em Nairobi, percebi que esta viagem era uma excelente opção por conciliar a viagem, a descoberta e a aventura.

O horário previsto era sair de Nairobi às 19:00 h, e chegar a Mombaça às 10:00 da manhã do dia seguinte. O jantar e o pequeno almoço eram servidos na carruagem restaurante e a noite era passada num compartimento com duas camas. Os meus amigos disseram-me que era uma viagem a fazer, agradável e tranquila.

Entretanto, em Nairobi, percebi que o ambiente na cidade era extremamente tenso e que resultava de mais uma crise com o movimento terrorista da milícia radical somali Al Shabab. Tinham havido recentemente combates com este movimento na fronteira da Somália e retaliações com atentados à Granada em Nairobi. Não havia restaurante, centro comercial ou outra zona de acesso público onde não verificassem todas as pessoas, com detetores de metais, revistassem malas ou mochilas e mesmo os carros quando acediam aos parques de estacionamento eram revistados manualmente e com espelhos para o despiste de engenhos explosivos.  Aliás, este conflito não se apaziguou e há uma semana houve um violento atentado numa zona muito movimentada da capital, num terminal de transportes públicos, morreram seis pessoas e várias dezenas ficaram feridas.

Depois de viver esta autentica paranoia securitária própria de um estado de guerra, comecei a pensar se tinha sido boa a opção de viajar de comboio numa viagem tão longa e que parava em tantas localidades, tornando este comboio um alvo apetecido de quem quiser ter atenções mediáticas para alimentar a causa.

Às 18:30, cheguei à estação e deparei-me com milhares de pessoas que se amontoavam na estação à espera do comboio. Curiosamente a entrada na estação não tinha qualquer procedimento de segurança. De início apreensivo, comecei a relaxar depois de conversar com vários turistas das dezenas que lá estavam para apanhar este comboio. Fiquei ainda mais relaxado quando vi muitas famílias de gente dos mais variados lugares do ocidente, com imensas crianças que esperavam com expectativa o comboio.

Às 19:00 como previsto o comboio chegou à gare e fiquei incrédulo com a pontualidade. Enganei-me, o comboio tinha chegado de Mombaça, ia naquele momento para a lavagem, limpeza, ser fornecido de comida e roupa de cama.

Esperei, esperámos todos. Às 23:00 já estávamos todos cansados da espera, com fome, porque era suposto haver um jantar no comboio às 20:00. Às 23:00 chega novamente o comboio, desta vez preparado para partir. Começámos todos a entrar, à procura da carruagem certa naquele comboio gigante que se preparava para transportar milhares de pessoas. Depois de procurar pelas carruagens de 1ª classe que tinham os compartimentos cama, lá as encontrei e arrumei-me.

Como só havia um vagão restaurante, o meu jantar iria ser servido na terceira ronda. Hora prevista 2:00 da manhã. Por volta das 24:00 o comboio iniciou a viagem rumo a Mombaça. Depois de umas cervejas na gare enquanto esperávamos o comboio e o ram-ram do comboio agora em movimento caí num sono profundo. Acordei à 1:30 com o sino que anunciava a segunda leva para o jantar. Adormeci novamente. Acordei às 4:00, obviamente sem jantar. O tempo para o jantar já tinha acabado, explicaram-me amavelmente. Protestei com os atrasos que se convenceram a servir o jantar aquela hora tardia.

Mombaça, Quénia, Dezembro de 2011


Fiquei a olhar atentamente para o comboio, dos anos 50, cheio de pormenores luxuosos para a época, mas que agora já não funcionavam. Ventoinhas nos tetos, lavatório com água no compartimento, luzes de leitura nas camas, tomadas para maquinas de barbear, pormenores que na altura faziam o conforto dos passageiros.

Às 8:00 o calor começa a fazer-se sentir na carruagem e às 11:00 começa a parecer insuportável. Às 15:00 começa a entrar um brisa marítima que refresca um pouco o ar húmido e pesado do comboio. Mombaça está à vista no horizonte. Pelo meio ficaram inúmeras aldeias de gente que só tinha a passagem do comboio para quebrar a rotina diária. No final, uma viagem que durou 20 horas, desconfortável, mas inesquecível.    

quinta-feira, março 08, 2012

Social 32

Foto de Adriano Miranda



Partilho aqui mais uma reflaxão do Mia Couto, muito cáustica sobre os tempos que correm, sobre o não conflito de gerações. Uma reflexão bem caracterísitaca do Mia Couto.


'Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida.

Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e tambémestão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.

Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.

Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.

Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.

Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.Foi então que os pais ficaram à rasca. Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.

Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!

A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.

Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com queo país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.

Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.

Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade quequeimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.

Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável. Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.

Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração? Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!

Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todosnós).

Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.

E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!

Novos e velhos, todos estamos à rasca.Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles. A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. 

Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.

Haverá mais triste prova do nosso falhanço?'


Acho que o Mia Couto estava bem zangado quando escreveu este texto.
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