sexta-feira, maio 06, 2005

Ambiências 11

Deixo aqui um poema do Al Berto escrito na sua fase mais desesperada e terminal. Por muito que saibamos da fragilidade da vida e da inevitabilidade da morte, o seu anúncio reveste-se sempre de profunda tristeza e raiva. Um beijo grande para ti.


Um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
Mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém.
A dor, a perna amputada, a chaga viva, o sangue a latejar – o mapa da abissínia.

O sol enterra-se nas areias.
Viajo, sem me mexer desta enxerga branca.
Tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.
No lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais são formas etéreas que se me colam ao rosto.
O que morre, quase não faz falta...

Dantes ouvia o mar...bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
Mas um homem em cujo coração se tenha concentrado toda a fúria de viver, será um homem feliz?
Não sei se posso querer alguma eternidade...não sei...

O que vejo já não se pode cantar.

Que horas serão dentro do meu corpo?
Que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia...não sei...não sei...

O que vejo já não se pode cantar.

Lembro-me de uma cabeça rebelde flutuando junto à janela.
Mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer, não me lembro de mais nada.

O que vejo já não se pode cantar.

Recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos, atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto – atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento.

O que vejo já não se pode cantar.

Caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos acendo o firmamento da alma.
Espero que o vento passe...escuro, lento. Então entrarei nele, cintilante, leve...e desapareço.
Al Berto – Horto de Incêndio
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